Cassio Carvalheiro

quarta-feira, 28 de março de 2012

BURLESCO - Crônica: "Nó Cego"

“Nó Cego”

Abrimos aqui um espaço para ilustrar o pressuposto do comportamento fatalista que caracteriza o “Nó cego”  citado em Lastro conceitual  neste blog.
Tal pressuposto nos diz que esse comportamento ocorre “fatalmente, independente do esforço eventual do indivíduo, em sentido contrário.” (Ho!Ho!Ho!). Além disso, “considera-se que  todos os comportamentos são inevitáveis, inclusive os de vontade”.(há! Haa!).
“Nó cego” é uma crônica de maio de 2001 e que foi inserida no Burlesco, em Personagens.


Nó Cego
Dia de eleição. Tudo pronto para a eleição. O juiz eleitoral já apareceu na TV  e deu o seu recado na véspera,  informando tudo o que todo mundo já sabia através dos meios de comunicação. O povo já sabia o horário de abertura e fechamento das urnas, a atuação dos fiscais e mesários, qual documento teria de levar, como votar e principalmente, a hora do término de votação. Aliás, falar em urnas é coisa do passado, ou coisa de americano, que nas últimas eleições presidenciais (2000) , teve um sério problema com a contagem de votos das urnas de um certo Estado lá deles, que provocou a demora de várias semanas para definir o resultado final da eleição. Aqui no Brasil já temos o voto eletrônico. A votação é armazenada em disquetes e na memória de computadores nos locais de votação e transferida via rede (net) de comunicação. Tudo muito rápido, desde o processo do eleitor na seção eleitoral até a contagem e anúncio dos resultados,como manda a nova tecnologia. Votar não demora mais que meia hora, em qualquer seção eleitoral.
Faltando cinco minutos para encerrar a votação, chega na seção eleitoral o  cidadão folgado que foi aproveitar o dia na praia, segundo o próprio. Nem precisava dizer. Estava de bermudas, camiseta suada, queimado de sol. Era o mesmo eleitor que chegou atrasado na eleição anterior, lembrou o presidente da mesa. Lembrava-se bem do sujeito, que como desta vez, chegou esbaforido e perguntando se ainda podia votar. Disse que tinha ido visitar a sogra num bairro distante, naquela oportunidade.
Não conseguiu votar, pois tinha esquecido de trazer qualquer documento que pudesse identificá-lo. Saiu lamentando-se do trabalho que teve para chegar até o local da votação e ser impedido de votar.
À noite, vi esse sujeito ser abordado por um repórter na TV. Tinha acabado de sair da seção eleitoral e disse que não conseguira votar por que o presidente da mesa não concordou que ele fosse à sua casa buscar o título de eleitor.

Não fossem as circunstâncias e o modo como estava vestido, quase poderia dizer que vi na TV, aquela triste figura que não pode votar na eleição, após as oito horas da noite, no último dia para entrega da declaração do imposto de renda deste ano. O sujeito estava com o disquete da sua declaração do imposto de renda na mão e uma reclamação prontinha na cabeça, quando foi entrevistado por um repórter, do lado de fora de um Banco.
“Tenho imposto ainda a pagar e o Leão (Receita Federal) diz que não posso entregar a minha declaração, que tive que ficar a tarde inteira fazendo na Firma . Além de ter que fazer meu imposto às pressas o Banco só recebe até as oito horas. Assim, não dá.”
Pobre contribuinte. Não conseguiu entregar sua declaração do imposto de renda e ainda terá que pagar multa por atraso. Vai ficar mais pobre ainda.
Pode parecer brincadeira, mas acho que vi novamente aquele sujeito que não conseguiu votar na eleição. Se não era ele, era aquele que não conseguiu entregar sua declaração do imposto de renda. O jeito era o mesmo. Tinha cara de injustiçado. Foi logo depois que uma emissora de TV apresentou uma reportagem sobre escritórios especializados em tirar dinheiro de motoristas aterrorizados com suas multas de trânsito. Esses escritórios anunciam, em jornais ou através de cartazes, que conseguem limpar multas de trânsito e deixam o telefone para que o pobre do infrator de trânsito solicite seus serviços.
O sujeito estava conversando com um amigo na mesa ao lado, na praça de alimentação do Shopping. Falava alto, como se estivesse dando uma declaração para que todo mundo ouvisse. Parecia esperto. Contava ao amigo, que tinha estourado o limite de pontos por infrações e que iria perder sua carteira de habilitação. O pior, dizia ele, é que “não posso pagar as multas. Não faz nem dez meses que tirei meu carro e já levei todas essas multas. Nem vendendo meu carro vou conseguir pagar as multas. Tô fodi..... Tem nada não. Amanhã mesmo vou num escritório que um amigo me falou que tira qualquer multa”.  
Não era esperto. Talvez assim pensasse, ao ultrapassar a velocidade permitida  ou transitar em dia de rodízio, cruzar faróis vermelhos, ou outra infração que sua esperteza ainda espera anular num daqueles escritórios especializados. Tomara que caia nessa. Assim estaremos livres de mais um infrator de transito, sem carro, sem dinheiro e sem carteira de habilitação. 

Há uns dias atrás, logo após o Presidente da República (FHC) ter lançado a Medida Provisória 2148-I que impõe as regras e metas para o racionamento de energia, emissoras de TV andaram perguntando à população, o que achava dessa medida. O povo já estava informado da necessidade insofismável de racionar o uso da energia elétrica, de quanto teria que reduzir o consumo de energia na sua casa e das penalidades que poderia sofrer caso não conseguisse atingir sua meta de redução, inclusive da possibilidade de ter cortada sua energia. A Medida era inconstitucional, antecipavam alguns juristas, aos quais logo fizeram coro muitas vozes, com razão, diga-se de passagem.
Todos concordavam que o governo tinha dormido de touca, como se diz na linguagem popular, por não ter tomado providências a tempo de evitar a situação calamitosa a que chegamos, mas concordavam também que todo mundo deveria reduzir o consumo de energia. As usinas da região Sudeste e Nordeste estavam com suas barragens abaixo do nível aceitável para enfrentar o perIodo de  estiagem que vai até o fim do ano. Nunca o povo aprendeu tanto sobre o Sistema Elétrico, uso da energia elétrica, e mil maneiras de reduzir o consumo.
Foi nesse clima que vi ser entrevistado na rua, aquele sujeito que não conseguiu votar.  Se não era ele, era aquele que não conseguiu entregar sua declaração do imposto de renda. Não. Talvez fosse aquele que estava apavorado com suas multas de trânsito. Se não era nenhum dos três, só sei que  lá estava ele, aparvalhado e ansioso mais uma vez, para dar seu depoimento. Foi mais ou menos assim:
“Essa medida é inconstitucional. Não vou economizar coisa nenhuma. Vou gastar mais “luz” do que vinha gastando. Quando receber a conta com a multa vou entrar com ação na Justiça”.
É incrível como o repórter de rua consegue achar essa figura entre tantas que se acercam de uma câmera de TV, logo que as luzes dos holofotes marcam sua presença. Isto, sem falar daquela figura anônima que aparece tranqüilamente numa reportagem da televisão, no meio a uma violenta caçada a bandidos, por policiais armados, cães amestrados e  toda a parafernália. Acho existem mais de um nó cego por aí. (J.NAGADO – 30/05/01)

Nenhum comentário:

Postar um comentário