Crônica - A Simplicidade perdida
Ontem lembrei-me desta antiga crônica, após conversar com a senhora que faz o serviço de faxina aqui em casa, duas vezes por mês. Gente simples, vinda do nordeste, com o marido doente, depende de salário-família. Um irmão dela, lá na terra de Lampião, também recebe todos aqueles benefícios sociais com que o governo comprou milhões de votos da população carente junto com a sua
dignidade. Nossa ajudante, melhor informada da situação do País, já disse que não vai votar no PT. O irmão lá no nordeste diz que o "Governo rouba mas faz" e vai continuar a votar no PT.
A dignidade da pobre mulher desta crônica, que jamais recebeu qualquer esmola do governo, deveria ser um exemplo para todos os brasileiros.
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A SIMPLICIDADE PERDIDA
Um amigo telefona para convidar-me para uma pescaria no
Canal do Mar Pequeno, em Iguape, litoral Sul do Estado de São Paulo, onde ele estivera
pescando duas semanas atrás. A pescaria fora muito boa e isto o animou a
retornar, tão logo passasse o efeito das chuvas que caíram na região. Nessas
ocasiões, as estradas de terra batida vizinhas ao Canal do Mar Pequeno, ficam
quase intransitáveis.
Estive no Canal do Mar Pequeno, há uns quinze anos atrás,
para uma pescaria com um grupo de amigos. Para chegar ao local, tomamos uma
dessas estradas de terra batida que sai à direita da estrada SP-222, logo que
se cruza o rio Ribeira de Iguape. Havia chovido durante a semana e a estrada
estava lamacenta. Pelo caminho, havia apenas alguns casebres aqui e ali, e de
vez em quando passavam caiçaras de pés no chão carregando o palmito colhido nas
matas da região. Tudo era muito pobre, com exceção dos ranchos de pescadores
amadores, que proliferam na região.
Instalado num desses ranchos, pequeno mas confortável, com ampla
sala, cozinha e banheiro e dois quartos, fui dar uma olhada no Canal, que
ficava a menos de duzentos metros da casa. Diversos barcos de alumínio ou
madeira estavam em volta da casa, que tinha também uma extensão onde ficavam os
motores, as varas e demais materiais de pesca.
A tarde era chuvosa e quase não se via o outro lado, a Ilha Comprida,
que se apresentava como um vulto separado pela água escura e um pouco agitada
do canal. Dois meninos na beira lamacenta do canal caçavam siris, talvez o
jantar do dia seguinte ou alguns cobres (cruzeiro novo em dinheiro tupiniquim)
pagos por viajantes à beira da estrada.
O jantar, fora de série, parecia ter sido feito por um
cozinheiro internacional. Nada a dever. Peixada, é claro, refinada e muito
saborosa. O caseiro e sua mulher tinham aspecto simples e limpo, e trabalhavam
rápida e silenciosamente. Eficientemente, iguais a caseiros de casa rica de
novela da TV Globo. Aliás, na primeira vez que ouvi aquela mulher falar, foi
quando alguém lhe perguntou onde aprendeu a fazer aquela peixada. “Foi no
programa de culinária na televisão”, respondeu, singelamente, e pediu licença
para voltar à cozinha. O caseiro, aproveitando o descanso do pessoal após o
jantar, já estava conversando com o dono da casa sobre os barcos, motores e
quantidade de iscas que deveria providenciar para a pescaria da manha seguinte.
Tudo muito profissional e bem pago, pelo que soube.
A pescaria foi muito boa. À tarde, após o almoço, outra
demonstração de refinamento culinário dos caseiros, avisei o meu amigo, o dono
da casa, que iria até a cidade de Iguape encher o tanque do carro, já que
pretendia voltar cedo para São Paulo na manhã seguinte.
O dono da casa me avisou que a caseira precisava de alguma
coisa na cidade e lhe ofereci carona. Conversando com a caseira, esta disse que
iria pedir à sua mãe para ir comprar um remédio na farmácia e saiu na direção
da casa dela, pedindo que passasse lá para pegá-la.
Logo na saída do rancho, alguns metros
adiante na estrada de terra batida, ainda mais lamacenta após a chuva da tarde,
ficava o casebre de pau a pique da mãe da caseira. Surgiram ambas de dentro da
casa, sem porta. Uma senhora velha, de aparência bem judiada, chinelos de
dedos, recebia as últimas recomendações da filha, junto com o dinheiro. Um
amigo que ia comigo, ajudou a velha mulher a subir no banco de trás do carro,
pelo que a mulher agradeceu com um “Deus te abençõe, filho”. Logo que comecei a
andar, fez um Sinal da Cruz, aquele gesto respeitoso de pedido de proteção dos
católicos à moda antiga, da gente simples do interior.
No caminho, a estrada lamacenta e lisa, me fez lembrar do
sinal de devoção da velha senhora. Pedi-lhe: “Se a senhora achar que esta
estrada está muito ruim, nós iremos pelo asfalto (SP-222)”.
“Não paga a pena, filho. Por aqui é mais perto”, disse a
velha.
Vendo aquela senhora, pobre moradora daquele canto esquecido
pelos governos e só visitado por pescadores despreocupados com aquela pobreza dos caiçaras, tive até vontade
de comprar o remédio para ela, num gesto de caridade que certamente seria muito
bem recebido por ela. Gente simples e necessitada.
Na entrada da cidade, avistei um posto de gasolina e avisei
a velha senhora que encheria o tanque ali e depois iria leva-la até a Farmácia.
“Nhor não, filho. Não é preciso. Fico aqui mesmo”.
Desci ao lado da bomba de gasolina e abri a porta do carro
para a velha senhora descer. Ela desceu do carro, endireitou o corpo numa
postura comicamente altiva reforçada pelas vestes rotas que usava. Pensei que
ia agradecer e talvez combinar o retorno.
Antes que eu insistisse em levá-la à farmácia, ouvi dela:
“Obrigada, filho. Quanto devo pela viagem?”
Após alguns segundos de espanto, só consegui falar: “Não foi
nada, Vó. Vai com Deus”.
(JOSÉ NAGADO – 25/06/01)
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