Cassio Carvalheiro

quinta-feira, 27 de março de 2014

CRÕNICA (ANACRÔNICA) – OS MENINOS DA PRAIA (2001)

CRÕNICA (ANACRÔNICA) – OS MENINOS DA PRAIA  (2001)

Muita gente, hoje em dia, não tem idéia do que é alcançar a paz e a comunhão com a vida, quando vê a beleza de uma praia e respira  a brisa que balança as folhas dos coqueiros e agita as ondas no mar. Os meninos da Praia pareciam  atores  desse cenário. (josé nagado-27.03.2014)




OS MENINOS DA PRAIA (josé nagado-17/01/01)


   Caminhando pela água rasa para chegar até os corais da praia da Coroa Vermelha, em Porto Seguro (BA), comprei dois espetinhos de camarão por um real, que um esperto menino veio nos oferecer. O menino estava acompanhado de um outro menino mais novo e cada um carregava uma travessa ainda cheia de espetinhos.

   Após o passeio pelos corais, já instalados numa mesa de um bar, na sombra gostosa de um chapéu de sol, ficamos ali curtindo aquelas coisas que uma praia pode oferecer. Primeiro, a água de coco. Depois, o queijo quente, para provar. A batidinha inevitável, algumas ostras e o cajuzinho torrado também foram saboreados enquanto se aguardava uma porção de aipim frito. 

   Uma indiazinha se aproxima e oferece roupas indígenas infantis. Retorna depois, para pedir um pouco de aipim à minha companheira. Atendida, corre para dividir com outra indiazinha que ficara à distância, observando.

   Os meninos dos espetinhos nos reconhecem e se aproximam. Puxo conversa, e logo fico admirado com a esperteza do menino mais velho, que contou que tinha dez anos, estava estudando e já vivera em São Paulo com a família, até o pai se aposentar por invalidez, quando retornaram a Porto Seguro.

    Falante, demonstrou conhecer bem o seu negócio, que começou com dois quilos de camarão que seu pai ganhou, em pagamento pela limpeza de um cesto de camarões. Naquele momento, a produção de espetinhos já consumia cerca de vinte quilos de camarão. Esses camarões eram comprados ali mesmo, na Coroa Vermelha, pois se fossem comprados no Porto, não dariam lucro por serem mais caros, disse ele.

   Aproximam-se mais dois meninos, um deles vendedor de queijo quente e outro, de lembranças da praia. O primeiro senta-se na areia e procura conversa com o menino dos camarões, o mais velho. O outro, senta-se na areia, ao lado da minha cadeira. Sério, carrancudo, nem oferece sua mercadoria. Puxo conversa.

   Só tinha vendido duas peças até àquela hora, e carregava duas consigo. Realmente as duas peças eram pouco interessantes. Perguntei-lhe se não havia outras peças diferentes para oferecer. Teria que ir buscar em algum lugar que não falou. Falou que era índio da tribo Pataxó, a mesma tribo do índio que foi morto em Brasília, por garotos de boa família que tocaram fogo nele. Sabia da história e revelou que sua tribo iria mandar um ônibus cheio de pataxós a Brasília, para vingar aquele seu parente.

   O menino dos camarões falou que também era pataxó. Comentei então, que além de parentes eles, os meninos, eram amigos. O indiozinho cortou logo: “Não tenho amigo”.

   Ambos ficaram calados por um momento. Talvez algum desentendimento anterior tenha motivado isso. Para melhorar o clima, ofereci-lhes aipim, que ninguém aceitou.

   Aqueles meninos que estavam ali, apenas jogando conversa fora com um casal de estranhos, com certeza eram uma amostra significativa de um batalhão de garotos para quem a luta pela vida começa cedo, nas praias de Porto Seguro. Nenhum deles teria mais de onze anos. Todos saem cedo de casa e ficam na praia o dia todo vendendo seus produtos. Apenas o mais novo dos vendedores de espetinhos, de seis anos, disse que ia para casa para almoçar e trazer mais camarões para seu irmão. Os outros disseram que não comiam nada o dia inteiro.

   Apesar da idade, nove anos, o indiozinho Pataxó, não estava estudando. Fala a língua indígena e até nos disse, com uma ponta de satisfação, algumas palavras em sua língua. Quando lhe perguntei se morava na taba com seus pais, ele falou, com firmeza e orgulho: “Moro em casa”.

   Dois meninos mais velhos, de 16 a 18 anos se aproximam e oferecem seus produtos. Em seguida, discutem rapidamente entre si, sobre uma desconfiança de um deles, que é rebatida prontamente pelo outro. Talvez uma disputa por alguma rapariga da praia, pensei, lembrando-me de Jorge Amado e do seu “Capitães de Areia”. Os meninos mais novos começam a debandar. Os meninos da praia precisam continuar seu trabalho.

   O indiozinho logo estava vendendo uma peça para uma senhora  da mesa ao lado, que dizia a ele que deveria estudar.

   Caminhando um pouco mais para o Norte, visitamos a comunidade indígena, conhecida pelo seu museu, centro comercial e casas de alvenaria, motivo do orgulho tribal do indiozinho, e talvez da sua bronca  com o menino dos camarões, por este não fazer parte da sua comunidade. Quem sabe?


(José Nagado  -17/01/01)


2 comentários:

  1. Nagado, o que mais admiro nas suas crônicas é a facilidade com que você pega do nada (ou de um espetinho de camarão de um real) e faz um texto com tantas observações, puramente filosóficas. Isto que preciso aprender...
    Parabéns meu amigo! Um grande abraço

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  2. Caríssimo Nicanor obrigado pelo seu comentário que traduz, além da relação de amizade, a forma como o amigo Nicanor captou a mensagem dos "meninos da praia".
    Na ocasião (2000), não ficamos preocupados com aquele bando de meninos que se aproximaram de nós naquela praia . Se fosse hoje (2014) teríamos medo de sofrer um "arrastão", certamente. Como vê, nossa expectativa, o ambiente e
    contato com os meninos resultaram na crônica. Nada de observações filosóficas.
    grande abraço
    Nagado

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