Cassio Carvalheiro

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

      AFPESP                    ANTOLOGIA DOS ASSOCIADOS ESCRITORES 

CRÔNICA : O PALCO DAS RUAS

José Nagado

Personagens

Trabalhando muitos anos na região do Jardim Paulista em São Paulo, tive a oportunidade de me divertir observando alguns personagens que viviam por ali, muitos dos quais, com certeza, dariam histórias muito engraçadas. Alguns desses personagens aparecem em uma crônica que escrevi em  2001, relatando cenas engraçadas, humanas ou tragicômicas que   achei interessante para caracterizar os personagens que se apresentam naquilo que chamamos O PALCO DAS RUAS.

Quanta coisa engraçada poderia sair da boca desses personagens anônimos que a cidade grande mostra para quem quiser ver e ouvir. Um desses, vale a pena dizer,  bastante popular, O NO CEGO, caracteriza  gente que apenas vê no “outro” esse personagem. Veja, caro leitor,  se o “outro”   não era você.

Essas duas crônicas mostram como podemos ver o dia-a-dia com uma dose de humor bastando estar atento aos personagens que perambulam pela cidade

 

O Palco das Ruas

São Paulo não pára. Trabalha também de noite e de madrugada. Quando amanhece o dia, como diz a vinheta de uma emissora de rádio, São Paulo apenas “acerta a posição”.

Amanhece. A cidade grande “acerta sua posição”. Hordas de trabalhadores correm para não perder a hora de chegar ao trabalho.

Nem olham quem caminha ao seu lado, parado no meio do caminho ou caído no chão.

Um apressado trabalhador tropeça em um bêbado sentado na calçada. Tentando se equilibrar, o coitado apoia suas mãos em um pedinte, indo ambos ao chão. O pedinte levanta-se rapidamente e o ajuda a se levantar, estendendo-lhe mãos sujas.  

O trabalhador anônimo se transformou por um instante, de um distraído espectador a figurante envolvido com dois personagens que o palco das ruas da cidade grande apresenta todo dia.

O bêbado e o pedinte eram apenas dois dos personagens dessa tragicomédia que os olhos agora atentos do trabalhador anônimo passaram a ver.

Viu o mendigo, sentado no banco da praça, dividindo com os pombos que arrulhavam barulhentos à sua volta, os restos de pão de seu desjejum matinal.

Viu a velha senhora com os restos de roupas que um dia certamente alegraram  sua dona, parando o trânsito da Consolação com um gesto elegante e decidido, para atravessar a rua com imponência. De saltos altos e guarda sol, às sete horas da manhã.

 

Viu e ouviu, o orador das esquinas  movimentadas da avenida Paulista, trazendo seu recado das esferas mais bem informadas da política, recusando qualquer oferta de rendição do seu imaginário grupo guerrilheiro. Com sua rápida metralhadora verbal disparava, ã esquerda, ã direita e ao centro, por dois minutos, se tanto, e sumia na multidão,

 

Viu a escritora esfarrapada sentada nos degraus da passagem subterrânea sob a Consolação, escrevendo, imperturbável, no seu caderno roto e sujo Com certeza ela conhecia as histórias desses personagens que até então ele nunca tinha reparado, e só ela saberia dizer, quantas outras histórias mais.

Nosso anônimo cidadão chegou a pensar que todos fossem atores mambembes participando de uma campanha para humanizar a cidade.

 

Imaginou também que esses  personagens seriam criados por ela, a escritora, naquele caderno onde estariam registradas inéditas falas daquele que alimentava os pombos, as gags proferidas pela velha senhora quando quase foi atropelada ao atravessar a avenida e as diatribes daquele orador da Avenida Paulista.

 

Era, ainda, uma época bem mais tranqüila, sem a violência que a cidade agora sofre. Basta lembrar, por exemplo, que nessa época, um outro personagem, ficou conhecido por suas roupas e chapéu brancos, impecáveis, ao lado de um carro conversível, estacionado todas as tardes na extremidade da Avenida Paulista onde passa a Consolação. Esse curioso personagem ficou marcado  indelevelmente nas páginas de uma revista (ou jornal) que não me lembro. Se fosse hoje, teria também grande chance de ser notícia.  Notícia policial, vítima de assalto.

O caderno da escritora deve ter guardado para sempre a história de um personagem que circulava nas adjacências da região próxima da Paulista, Consolação e Angélica.

Nas páginas do seu caderno, acredito, a escritora não deve ter registrado que seu personagem cheirava mal e andava mal vestido. Como velhos companheiros das ruas, deve ter registrado que vestia um terno velho, mas elegante, e que era sempre muito educado com todos. Que pedia com educação e ganhava restos de comida nos restaurantes da região. Vi isto, mais de uma vez, naqueles tempos. Também deve ter registrado que seu personagem estava sempre de bem com a vida, que vivia cantarolando. Que não era violento.

 

Assim, cantarolando, o vi certa tarde, saindo da passagem subterrânea sob a Consolação, no lado da avenida Paulista. Caminhava descontraído e sem despertar a desconfiança de quem passava por ele, apesar do seu aspecto pouco sociável.  Olhou para dentro de um cesto de lixo, daqueles que ficam suspensos, e mostrou um grande sorriso. Esfregou as duas mãos na barra do paletó e com a mão direita tirou do bolso um guardanapo de papel. Com esse guardanapo pegou aquilo que foi o motivo do seu grande sorriso: um sanduíche mal aproveitado.

 

Antes de passar por mim, ainda o vi limpar o petisco e levantá-lo, como se estivesse agradecendo ao seu desconhecido benfeitor. Foi a última vez que o vi.

Certamente essa cena a escritora não viu e não escreveu. No dia seguinte ela não estava no seu lugar costumeiro. Desaparecera como tantos outros personagens do seu caderno, não deixando vestígios para aqueles que ainda vão chegar para o trabalho.

Outros atores dessa tragicomédia logo estarão nesse palco das ruas da cidade grande. É só querer ver. (JN – 03/09/2023)

 

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